Tem muita reza, tem festa e tem guerra
Um ato comunitário de resistência, uma cena coletiva
[a espectadora emancipada]
Eu tô aqui
Eu não tô só
Eu tô de frente pro açude Cocorobó
Já são longas décadas como espectadora de teatro e tantas delas como “gente de teatro” ou teatreira, modos pelos quais denominamos aquelas e aqueles profissionais que trabalham com teatro em cena, fora da cena ou para a cena. Estão contemplados naquelas simpáticas expressões, portanto, pesquisadoras e pesquisadores das artes cênicas, críticas e críticos, pedagogas e pedagogos teatrais e provocadoras ou provocadores cênicos, por exemplo ─ atuações que cumpro há tempos.
Pois bem: atenta, e desde essa posição de espectadora experimentada e “gente de teatro”, venho refletindo sobre as formas (entendidas aqui como maneiras poéticas e estéticas) pelas quais a cena teatral tem absorvido, ratificado ou confrontado as questões prementes da contemporaneidade e, mais especificamente, da sociedade brasileira nos últimos anos. O esfacelamento do tecido social, as fake news como arma de manobra, a adesão fácil a discursos-síntese, a insistência na performance (entendida em seu duplo sentido: jogo de ação e desempenho) em paralelo a um apego sempre renovado à representação, o espetacular repaginado, entre outras características, têm impactado ─ e muito ─ o fazer teatral e seus modos de produção e imposto desafios político-estéticos incontornáveis. Sem contar o perigo iminente da extrema-direita e suas táticas fascistas e facínoras.
Eita cidade submersa
Tem muita reza, estratégia
Tem guerra e festa
O teatro paulistano, pelo menos, vem respondendo a isso de muitas maneiras. Algumas falsamente didáticas, apelando a uma tutela moral do espectador e da espectadora; outras atônitas, buscando cativar o público por meio da ousadia da linguagem, almejando talvez provocar choque, assombro ou então fascínio; outras ainda afetuosas, entendendo a produção intencional de afetos [ver Spinoza] como estímulo à elaboração de um discurso poético comum, coletivo. Enfim, os caminhos têm sido diversos e vários deles, experimentais.
Tenho me interessado especialmente por espetáculos teatrais que contemplam a presença e a disponibilidade das espectadoras e dos espectadores ─ não quero dizer com isso necessariamente participação literal na cena (pode até inclui-la, mas não só). Entendo essas presença e disponibilidade como agência, o espaço de ação do próprio público, oposta à passividade ou à subserviência. Isso significa que peças assim acabam por refletir (posto que incorporam) a energia que se gera no encontro entre artistas e plateia. Eu, particularmente, gosto de sentir que minha presença é relevante para o acontecimento teatral; que participo de seu processo, que estou implicada nele.
Estrela violeira
A noite inteira cantou repente
Mergulhar em Canudos é
Mergulho fundo dentro da gente
[a peça]
Restinga de Canudos, da Cia. do Tijolo (SP)

A fila estava longa, mas topei com amigos e começamos a tecer fabulações. Era um domingo de sol, e o terceiro andar do Sesc Belenzinho se encontrava iluminado pela luz das cinco horas da tarde. Ao entrar na sala teatral, fomos recebidas e recebidos pelos atores, atrizes e músicos da Cia. do Tijolo, cada qual segurando um bambu, parte imprescindível da narrativa cenográfica. Os artistas ocupavam o centro da cena e entoavam uma das composições de Jonathan Silva:
Eu tô aqui
Eu não tô só
Eu tô de frente pro açude Cocorobó
Eita cidade submersa
Tem muita reza, estratégia
Tem guerra e festa
Estrela violeira
A noite inteira cantou repente
Mergulhar em Canudos é
Mergulho fundo dentro da gente
O açude Cocorobó foi construído entre 1951 e 1968 e se tornou um importante manancial hídrico do semiárido baiano. O que muita gente não atina é que o açude cobre justamente a área das ruínas do Arraial de Belo Monte, fundado em 1893 sob a liderança de Antônio Conselheiro aos pés do morro da Favela, numa antiga fazenda abandonada na igualmente abandonada vila de Canudos. Em seus quatro anos de existência, o arraial chegou a ter cerca de 25 mil habitantes vivendo sob um regime comunal e religioso. Eram camponeses, vítimas da seca e do sistema fundiário vigente (que priorizava os latifúndios); escravizados recém-libertos; indígenas; ex-jagunços e sertanejos em situação de pobreza, vindos das proximidades ou de outras regiões do Nordeste. A Canudos de Conselheiro e seus seguidores resistiu bravamente aos três primeiros confrontos perpetrados por forças oficiais, mas sucumbiu em 1897, depois de doze dias de resistência, diante da quarta e violenta investida, esta realizada pelo exército da incipiente república brasileira e um contingente de cinco mil homens. Para os poderosos da época (governos, militares, clérigos, latifundiários, polícia), Canudos era vista como ameaça à ordem e ao progresso, isto é, uma comunidade de “fanáticos e defensores da monarquia” que deveria ser eliminada. Pois o arraial foi inteiramente incendiado; e milhares de pessoas, mortas.
Sobreviventes da guerra (ou massacre?) fundaram outro povoado de nome Canudos no local da antiga comunidade de Belo Monte, por volta de 1910. Este povoado também desapareceu sob as águas do Cocorobó. Em dias de água baixa, em tempos de seca, lá no açude, é possível identificar indícios das ruínas da Canudos original. O atual município de Canudos existe desde 1985, quando um antigo vilarejo surgido ao pé da barragem durante a construção do açude emancipou-se política e oficialmente.

Mergulhar em Canudos é
Mergulho fundo dentro da gente
O primeiro gesto dos artistas, depois da calorosa recepção musical, foi partilhar um cuscuz entre todos, emulando o espírito comunitário que caracterizava a vida no Arraial de Belo Monte. “Onde comem quinze (referência ao conjunto de atores, atrizes e músicos em cena), comem 135 (aqueles somados aos 120 espectadores)”, disseram. Nesse gesto, tão artístico quanto político, fica evidente a perspectiva escolhida pela Cia. do Tijolo a respeito de Canudos: a experiência da vida em comunidade e de luta coletiva ─ ou seja, o cotidiano da gente comum. Em Canudos, ninguém passava fome, porque o resultado da produção era repartido. Comia-se o que se plantava. Havia cuidado mútuo. Durante toda a história do Brasil, seja nos tempos monárquicos, seja na atualidade republicana, as exitosas experiências comunais e comunitárias sempre assombraram elites, governantes e poderes instituídos. Não à toa, até hoje práticas associadas à comunidade, à comunalidade ou ao fazer comum causam tremor e pavor (e, agora, até em parte da população, que acha equivocadamente que partilhar significa perder o que se tem ou conquistou).
Eita cidade submersa
Tem muita reza, estratégia
Tem guerra e festa
Onde e como aprendemos sobre Canudos? Parece ser consenso: aprendemos nas aulas de História, muitas vezes de modo apressado e unilateral, e escutamos falar, nas lições de Literatura, de Os Sertões, de Euclides da Cunha. Contudo, poucos leem a obra euclidiana completa, que se divide em três partes: "A Terra", "O Homem" e "A Luta" e está embebida da visão determinista e positivista da época, nem sempre assinalada quando se estuda o texto (considerado genial, porém sabidamente contraditório). As e os artistas da Cia. do Tijolo lidam bem com essas perspectivas, equilibrando memória pessoal e crítica ao conteúdo padrão.
Restinga de Canudos combina, de modo original, abordagens histórico-documentais (organicamente inseridas na cena) e fabulações sobre como seria o cotidiano dos habitantes do Arraial de Belo Monte. Acerta ao mergulhar na história de Canudos e trazer à tona personagens e vivências cujos relatos ficaram fadados ao fundo do açude Cocorobó e ao lodo dos livros de História. As canções, de dicção popular, fazendo uso de sonoridades brasileiras e muito bem executadas em coro, apoiam o avanço da dramaturgia e contribuem para manter o ritmo da peça. Um dos pontos altos do espetáculo é o encontro frente a frente entre Antônio Conselheiro e Euclides da Cunha, interpretados com galhardia pelos ótimos Dinho Lima Flor e Rodrigo Mercadante ─ encontro esse que só poderia ocorrer no ali e então da cena. E, driblando a armadilha de um relato exclusivamente masculino, emergem duas figuras femininas igualmente fortes: as professoras da comunidade submersa de Canudos, em atuações cativantes de Karen Menatti e Odília Nunes. Aliás, é até injusto destacar alguns nomes porque todo o elenco se revela afiado.
Estrela violeira
A noite inteira cantou repente
Mergulhar em Canudos é
Mergulho fundo dentro da gente
A Cia. do Tijolo escolheu, portanto, lançar seu foco para os ausentes da História brasileira, ignorados sob as cifras do massacre republicano-militar. Aqueles e aquelas que se encontram “sob o radar do controle capitalista, às margens da ordem social, refratários à assimilação pelo sistema e em luta por outras formas de conviver, sentir e trabalhar”1, isto é, os sobcomuns [undercommons], no termo cunhado pelos pesquisadores estadunidenses Fred Moten e Stefano Harney. Para as e os artistas, importam mais as pessoas que sustentaram e defenderam o Arraial de Belo Monte que a sangrenta guerra promovida pela República sob a batuta do então presidente Prudente de Morais. A tessitura cênico-dramatúrgica de Restinga de Canudos permite, então, que reflitamos sobre a opacidade do discurso oficial e consideremos as diversas facetas da luta de classes ─ sempre atravessada pelo racismo e pelo patriarcalismo ─ que constitui o Brasil desde seus primórdios.
Numa espécie de distanciamento brechtiano, a modo de pausa no jogo cênico ou de interlúdio crítico, a professora Silvia Adoue, docente da Unesp-Araraquara e da Escola Nacional Florestan Fernandes (MST), foi chamada à cena para dar uma breve “aula” que, segundo os artistas, mudava a cada apresentação. No dia em que assisti à peça, Silvia projetou três registros fotográficos feitos pelo exército brasileiro (uma mise-en-scène de militares com arma em punho, simulando um combate; um sertanejo capturado por soldados; e grupo de sobreviventes de Canudos, deslocados de guerra) e os analisou. Enquanto a escutávamos, bebericávamos um golinho de cachaça dourada servida pelo elenco.
Na encenação tem muita reza (embora a peça não se aprofunde sobre o messianismo brasileiro do fim do século XIX), tem festa (a encenação incorpora a ideia de celebração como expressão da resistência) e tem guerra (valorizando o ponto de vista sertanejo e não militar). Restinga de Canudos instaura-se como um acontecimento que ultrapassa as fronteiras do acontecimento teatral: torna-se um ato coletivo que revitaliza ─ em vez de simplesmente representar ─ o que teria sido a experiência comunitária de Canudos. Todos os detalhes contribuem para um espetáculo envolvente, ou seja, que envolve e incorpora o público: o figurino, a iluminação, a bela cenografia que faz uso dos bambus, os elementos cênicos, além das já mencionadas composições musicais. Um espetáculo que não hierarquiza o texto, mas tem na dramaturgia bem urdida um de seus pilares. Trata-se de um convite (inclusivo, acolhedor) à redescoberta do Brasil por meio de suas entranhas resistentes e combativas. Recomendadíssimo!
Afinal, onde festejam quinze, festejam 135, festejam milhares.
Onde lutam quinze, lutam 135, lutam milhares.
Restinga de Canudos, criação da Cia. do Tijolo:
Criação e dramaturgia: Dinho Lima Flor e Rodrigo Mercadante
Direção geral: Dinho Lima Flor
Elenco: Dinho Lima Flor, Rodrigo Mercadante, Karen Menatti, Odília Nunes, Artur Mattar, Jaque da Silva, Danilo Nonato, João Bertolai, Marcos Coin, Dicinho Areias, Jonathan Silva, Juh Vieira
Atriz colaboradora: Vanessa Petroncari
Movimento e corpo: Viviane Ferreira
Composições originais: Jonathan Silva
Direção musical: Cia. do Tijolo e William Guedes
Desenhos: Artur MattarCenário: Cia. do Tijolo e Douglas Vendramini
Assistência de cenotécnica: Tati Garcez e Gonzalo Dorado
Figurino: Cia. do Tijolo e Silvana Marcondes
Iluminação: Cia. do Tijolo e Rafael Araújo
Som: Hugo Bispo
Fotos: Alécio Cézar e Flávio Barollo
Design gráfico: Fábio Viana
Assessoria de imprensa: Rafael Ferro e Pedro Madeira
Direção de produção: Garcez Produções (Suelen Garcez)
Produção executiva: Suelen Garcez
Assistência de produção: Tati Garcez
[pé de página]

Continuo a acompanhar a nova fase de The Last of Us, série da qual me tornei fã. Embora ache que a direção e a montagem na segunda temporada estejam menos inspiradas e criativas em comparação às da primeira, tenho gostado das reflexões e dos sustos que os episódios me provocam ─ ainda que os episódios anteriores me parecessem bem mais horripilantes. Continua sendo uma série bastante violenta, é preciso dizer. Confesso que sempre me recordo dos golpistas do 8 de janeiro quando vejo a multidão de infectados alucinados saindo em disparada atrás de seus alvos. Os infectados só não vestem verde-amarelo, são bem mais sombrios, no entanto a insanidade e o comportamento destrutivo de manada parecem semelhantes aos da turma-quebra-tudo com a camisa da CBF... Socorro! E você, gosta da série?
Leitora, leitor,
chegou até aqui? Aleluia!
Agradeço sua leitura. Faça um comentariozinho, mande uma mensagem ou dê uma curtida para eu saber que você me acompanhou durante todo o trajeto! :)
Alguma sugestão?
Quer me mandar um livro ou indicar um filme? Escreva-me!
E divulgue os Diálogos Superinteressantes entre suas amigas e seus amigos!
Agradeço aos leitores e leitoras da news Hiperobjetos, do querido Damien Jurgensen, que chegaram por aqui! :) Aproveito e a recomendo a meus fiéis leitores e leitoras!
Trecho da sinopse de Sobcomuns – Planejamento fugitivo e estudo negro (Ubu).
Fiquei interessada na cachaça, brincadeira, na peça.
A referência ao Rancière (Le spectateur émancipé) me é cara.
Às vezes São Paulo parece do outro lado do mundo, gostava de tomar um café consigo.
Bj.